[Entrevista] “Não leve o personagem pra cama” – Desvendando a dupla identidade nas HQs, com Marcelo Bolshaw

O elemento das identidades secretas é um dos mais recorrentes nas Histórias em Quadrinhos de Super-heróis. Hora utilizada como elemento de identificação com o leitor, hora como ferramenta para tratar de temas mais profundos como transtornos de identidade e personalidade. Para falar sobre as identidades secretas, o Onomatopeia conversou com Marcelo Bolshaw Gomes[1], pesquisador e membro do conselho editorial da revista Imaginário!, publicação dedicada a análises acadêmicas sobre as Histórias em Quadrinhos (produzida pela editora Marca de Fantasia e Namid – Núcleo de Arte, Mídia e Informação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba).

Além de jornalista e professor universitário, Bolshaw é pesquisador de quadrinhos.

Sobre o tema desta entrevista[realizada em 2015], Bolshaw é autor do artigo O HERÓI DE DUAS FACES A dupla identidade dos super-heróis.

Onomatopeia: Como você avalia a questão das duplas identidades nas histórias em quadrinhos, dos pontos de vista narrativo, psicológico e sociológico?

Marcelo Bolshaw: Eu acho o seguinte, que todo mundo tem uma identidade secreta. Não é só na história em quadrinhos, fora também. Tem uns neurocientistas que dizem que a gente tem sinapses fixas e sinapses móveis. As sinapses móveis são personalidades, as sinapses fixas, são individualidades.

Por exemplo, um ator se trabalha montando os personagens. Eu acredito que todo mundo faz isso, de uma forma ou de outra. Por exemplo, pra vir trabalhar aqui [na UFRN], eu criei o personagem do professor, mas mantenho minha individualidade. Eu acredito que agora, socialmente, a tecnologia com a coisa dos avatares reforçou muito isso. A pessoa cria um plus para sua personalidade virtual e isso todo mundo faz involuntariamente. De certa forma, a gente vive, todo mundo, uma questão de dupla identidade. Uma identidade mais social (a vitrine) e uma individualidade mais oculta e privada, (menos vitrine e mais Batcaverna), uma coisa mais secreta.

A dupla identidade do Homem-Aranha causa conflitos constantes entre seu lado heroico e sua vida civil.

Narrativamente, eu acho que as narrativas de histórias em quadrinhos descobriram isso, foi a primeira linguagem que descobriu que a gente vive uma vida dupla e começou a trabalhar com isso. Agora, por exemplo, o Super-Homem tira os óculos, a Mulher Maravilha, a Diana Prince não é bem uma. Então o Batman é um personagem que realmente funciona com a dupla identidade porque a identidade secreta dele é o Batman, ele tem a Batcaverna, ele tem tudo que sustenta isso, a grana. E é a dupla identidade que passa de pessoa pra pessoa, de personagem pra personagem.

Nesse caso, outras pessoas podem dar continuidade.

Bolshaw: Podem dar continuidade, é um caso de dupla identidade narrativa. Se transforma numa narrativa dentro da própria narrativa.

Do ponto de vista psicológico, essa história de dupla identidade, (uma mais social e outra mais recolhida) cria uma série de problemas, como o problema da sombra, ou seja, aquilo que você não quer mostrar, ou mesmo de acreditar no personagem. “Não leve o personagem pra cama” como diz a música [Tudo Igual, do Lulu Santos]. Eu sou professor, acredito relativamente que sou professor, mas não acredito nessa identidade. Se eu passo a viver nessa identidade como verdadeira, eu vou me decepcionar, me estressar, ia enlouquecer. Porque tem sérios problemas que a dupla identidade coloca para as pessoas. De dissociação da máscara, de apropriação, de mudança.

Na história da minha vida, eu fui quatro pessoas bastante diferentes. Eu era um cara muito contracultural, muito Rock n’ Roll, até os 29 anos. Aí, eu tive uma grande crise e modifiquei tudo, passei a ser um personagem que eu chamo Marcelo Gomes e fui o jornalista Marcelo Gomes durante muito tempo. Depois cheguei aqui na universidade pra ser professor e tive que recriar o personagem, virei o Marcelo Bolshaw, um terceiro personagem e assim, essas passagens de mudança de uma personalidade pra outra, de uma identidade social pra outra são bastante difíceis.

Eu acho que deveria ser o tema central da psicologia hoje em dia, a questão das duplas identidades.

Por que você acha que as duplas identidades se tornaram um recurso tão comum nas histórias de super-heróis?

Bolshaw: Olha, principalmente, por causa do sucesso do Batman. Do ponto de vista narrativo, é isso.

Agora tem uma frase no último filme, o Batman diz: “A máscara não é pra me proteger, é pra proteger as pessoas que eu amo”.  Essa frase, na verdade, mostra bem o porquê do sucesso. O protagonista tem que proteger a vida, a individualidade e a vida familiar dele. Que ele usa aquilo pra fazer o que ninguém faz e, ao mesmo tempo, mantém a vida cotidiana intacta, isso só é possível através da dupla identidade. Daí o sucesso.

 Agora como eu falei, os primeiros super-heróis, o Super-Homem e a Mulher Maravilha, eles não têm isso forte, a partir do Batman e de outros, porque vem uma série de outros. Se você for ver o Hulk, o Hulk é uma dupla identidade que não é secreta. Todo mundo sabe que Bruce Banner é o Hulk. O Homem – Aranha tem uma dupla identidade, é uma coisa que funciona.

Clark Kent/ Superman é o principal representante dos super-heróis com a identidade secreta relacionada com a mídia.

Tem um trabalho do Alex de Souza, uma dissertação do mestrado [A representação do jornalista nas histórias em quadrinhos: Cyberpunk e novo jornalismo numa leitura crítica de Transmetropolitans] que faz um apanhado de como o jornalista, o fotógrafo, o cara que trabalha na comunicação é um lugar-comum nas HQs, e ele vai mostrando como todos os super-heróis têm um gancho com a mídia; a identidade secreta dele tem a ver com comunicação sempre, então essas são as duplas identidades que dão mais certo.

Que vem muito do folclore do jornalista clássico, o cara que tinha que resolver os problemas da sociedade.

Bolshaw: Exatamente, que não consegue, aí vira o Super-Homem. Ou vira o Homem-Aranha. É engraçado que a identidade secreta funciona melhor com esse tipo. Enquanto outros super-heróis não têm sentido, o Wolverine, os X-Men, eles usam máscaras por questões estilísticas, mas eles não têm vida dupla. Vida dupla mesmo é um tipo de super-herói que tem vínculos familiares, que tem família.

 E geralmente que também está à margem da lei.

Bolshaw: Que a identidade secreta está à margem da lei, ele tem vínculos afetivos e familiares e a personalidade dele vai contra.

E o que é mais importante, o homem por trás da máscara ou o ideal que ele representa como símbolo?

Bolshaw: O ideal que ele, como símbolo, representa. Porque você vê, tem um livro que começa contando a história de um ventríloquo, o cara começa a criar um personagem e, com o passar dos anos ele começa a conversar com o personagem, o personagem ganha vida própria. Tem gente que diz que ele era espírita, que o cara era médium, mas eu acredito numa coisa que é a memória do inconsciente coletivo. De alguma forma, aquele cara conseguiu captar a memória do inconsciente coletivo.  E isso acontece muito. No maracatu, quando o cara pega na boneca é que desce o santo. Então, essa história do brinquedo, no caso da identidade secreta, o manto é como se fosse um totem. Na verdade, não é o Bruce Wayne que é o Batman, tanto que outros “Batmans” foram surgindo, o Batman continua e o Bruce Wayne já era. A própria história mostra isso, que o mais importante é o símbolo da máscara, do capuz, a busca da justiça, acima da lei, e não o milionário que está ali por trás financiando ele. A mítica do super-herói é que qualquer um que vestir o capuz vira o Batman. Todas as características psicológicas do Batman encarnam em todos aqueles que incorporam a imagem dele. O homem por baixo do capuz é um blefe, ele pode ser qualquer um.

“(…) todo mundo tem uma identidade secreta. Não é só na história em quadrinhos, fora também. (…) Por exemplo, um ator se trabalha montando os personagens. Eu acredito que todo mundo faz isso, de uma forma ou de outra.(…) a pessoa cria um plus para sua personalidade virtual e isso todo mundo faz involuntariamente. Uma identidade mais social (a vitrine) e uma individualidade mais oculta e privada (menos vitrine e mais Batcaverna), uma coisa mais secreta”.

Pra você quais são os casos mais interessantes de dupla identidade nas histórias em quadrinhos?

Bolshaw: Olha, o Fantasma é outro caso desses que o que vale é o símbolo, como é pioneiro. O Batman que, pra mim, é grande ícone disso, da dupla identidade. O que eu acho é que, hoje em dia, a dupla identidade até caiu um pouco. Hoje em dia, existem vários heróis que não tem dupla identidade.

O Fantasma é um personagem cujo manto é passado de geração em geração.

 O Homem de Ferro que revelou sua identidade, o Quarteto Fantástico nunca teve.

Bolshaw: O Quarteto Fantástico nunca teve. O Thor virava um Médico, hoje em dia, isso não existe mais. Namor não tem. Aquaman não tem. Capitão América também não tem, ele é o soldado.

Ele é sempre o soldado, ele não tem outra vida. Até na história Guerra Civil ele fala que identidades secretas são apenas um lugar aonde os super-heróis vão quando não estão fazendo nada importante. Quer dizer que ele pode mudar a identidade civil dele porque a verdadeira é a de herói.

Bolshaw: É uma identidade secreta ao contrário.

Sobre o Batman, um pensamento que eu tenho é que por ele ter um trauma de infância, eu vejo como se ele (como o Batman) esteja realizando uma fantasia infantil.  Ele teve a infância perdida e ele como adulto se fantasia de herói e ele tem “os brinquedos”, o Batmóvel, tudo isso, a Batcaverna que é o clubinho dele e os amigos dele são garotinhos (os Robins).

Bolshaw: Boa interpretação. Tem um filme que eu chamo de Batman no divã, mas ele tem outro nome, é um documentário do History Channel [Batman desmascarado: A psicologia do Cavaleiro das Trevas] que eles pegam vários psiquiatras e entrevistam.  Eles falam sobre o Asilo Arkham inteiro e tentam mostrar que o Batman é um psicopata, lutando contra outros psicopatas como o Coringa.  Então tem o negócio do trauma infantil que eles trabalham bem que é o negócio do medo, que é o cara tentar fazer com que o outro fique com medo daquilo que ele teme. Toda essa simbologia do morcego, ser uma forma lúdica de superação de uma fobia e se apropriou do negócio que ele tinha medo para superar essa fobia, mas dessa forma lúdica, de sair brincando, eu nunca tinha pensado. O que é bem legal!

Mais do que acessórios, capas e máscaras são parte da composição de personas heroicas.

Na história do Frank Miller (O Cavaleiro das Trevas), ele assiste ao filme do A Marca Zorro na noite em que os pais dele morrem, então do Zorro pro Batman é uma associação bem próxima. O Zorro serviu até de inspiração para o Batman.

Bolshaw: Certamente, agora que você falou do Zorro, O Zorro talvez seja o avô das identidades secretas porque o Dom Diego tem que se fazer de quase “bicha” pra se disfarçar, então ele tem um comportamento ridículo na frente do pai, da noiva, pra convencer que não é o Zorro; então é uma coisa exagerada e isso, para o cara que vê, é muito interessante porque dá pra ver os opostos que a gente tem. Ninguém é o machão o tempo todo, também tem um lado frágil, no caso do Dom Diego e o Zorro isso fica explicitado ao extremo.

Uma vez eu vi um estudo de cibercultura que um cara entrava num chat de internet e buscava um avatar que era o oposto dele, então tinha muito machão que se fazia passar por mulher pra experimentar aquilo sem ninguém saber, e eu fiquei pensando: isso também acontece quando alguém cria uma identidade secreta, ela polariza algumas coisas, ela vai ao extremo de um lado e de outro.

Bolshaw: Se você vê as eleições, o Collor dizia que era “O caçador de marajás”. O Lula, “O Lulinha, paz e amor”. As pessoas acabam criando personagens e isso funciona na mídia.

 Encarnam um arquétipo…

Bolshaw: Encarna um arquétipo e isso é muito mais comum do que a gente imagina, pessoas que criam uma imagem pública pra ganhar uma eleição. Isso é uma forma de transformar sua vida em narrativa e sua personalidade em personagem. Nós estamos de um jeito, que todo mundo vive duas realidades (uma virtual e uma sensorial) e a gente acaba criando uma identidade para o virtual, outra para o sensorial. Todo mundo faz inconscientemente e quem não faz isso, acaba sendo colocado de coadjuvante na narrativa dos outros.

[1] Marcelo Bolshaw é jornalista e professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, graduado em Comunicação Social, mestre e doutor em Ciências Sociais; com afinidade com os temas Teorias da Comunicação, Comunicação e Política e Cibercultura.

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