[Onomatopeia Entrevista] IAC, IAC, IAC! O Sorriso Pensante de Ivan Cabral

Provocar o riso, ao mesmo tempo que se faz refletir sobre assuntos importantes da sociedade, tem sido a missão do cartunista, ilustrador e chargista Ivan Cabral. Há mais de trinta anos, o profissional tem satirizado, com extrema destreza, aspectos da nossa cultura, política e comportamento.

Ivan Cabral é um dos grandes nomes
do humor gráfico potiguar.

Revelado durante a segunda geração de artistas formados pelo Grupo de Pesquisa em Histórias em Quadrinhos (Grupehq[1]), Ivan construiu uma sólida carreira como ‘jornalista do traço’, tendo registrado, nas páginas dos principais veículos da mídia potiguar, momentos de mudanças sociais e históricas.

Nascido em Areia Branca (RN) no ano de 1963, Ivan debutou nos quadrinhos na década de 1980, através da revista Maturi, publicação que nos anos 1970, manteve acesa a chama dos quadrinhos potiguares e serviu de vitrine para jovens artistas no decênio seguinte.

O carro-chefe da trajetória artística de Cabral, contudo, reside no humor gráfico. O quadrinista estreou nas charges diárias em 1983 e, desde então, se notabilizou como um dos expoentes do gênero, figurando durante 21 anos, como um dos destaques do Diário de Natal. Teve ainda contribuições para a Tribuna do Norte e o Novo Jornal, neste último, trabalhou até 2016, ano em que deixou a mídia impressa.

O ilustrador é autor das coletâneas de charges Já era Collor [em coautoria com Cláudio Oliveira, Edmar Viana e Emanoel Amaral] (1991), Humor Diário (2005) e Humor Sustentável (2016); além do livro infanto-juvenil A Estrela Cadente (2019). Mestre em Educação, Ivan chefia o setor de Criação e Arte da Superintendência de Comunicação da UFRN e realiza charges para a TV Universitária.

A carreira de Ivan Cabral e suas reflexôes acerca do papel da charge na mídia, são temas da entrevista a seguir:

Onomatopeia: Como se deram seus primeiros contatos com o desenho e com as histórias em quadrinhos?

Ivan Cabral: Desenho desde criança, como a maioria dos artistas. Meu pai, apesar de não ser um amante dos quadrinhos, me presenteava com gibis. Isso se deu, no início dos anos 70. Personagens que, hoje, imagino devem ser desconhecidos para muita gente: Brasinha, Miudinho, Lelo, Brotoeja. Na sequência, consumi os da Disney, Ebal, Turma da Mônica…

Quando você estava começando, quais eram as suas influências artísticas?

Cabral: Os personagens da Disney foram marcantes no aprendizado do desenho cômico. Também me aventurava no desenho clássico através das HQs de Tarzan, Fantasma, e o pacote de super-heróis que chegavam via [Editora] Abril (Capitão América, Homem Aranha, Thor, Hulk, Batman, entre outros). Nessa linha do desenho clássico, o traço de Joe Kubert me fascinava. Apesar de gostar e imitar os traços mais precisos como os de Jack Kirby, Lee Falk, Alex Raymond, Hal Foster, Paul Gulacy, por exemplo, achava mais interessante o estilo de Kubert e Ivo Milazzo (Ken Parker).

Como fui tendendo cada vez mais para o desenho cômico, Ziraldo foi uma das maiores influências nessa área.

Capa de Ivan Cabral para a revista Maturi nº2 (2010).

Como ocorreu sua entrada para o Grupehq (Grupo de Pesquisa e Histórias em Quadrinhos) e qual a importância do grupo e da revista Maturi na sua formação artística?

Cabral: Conheci o Grupehq no início dos anos 80, quando estudava na “eterna ETFRN” [atual IFRN]. Um amigo mostrou meus desenhos para um professor de lá, Walfredo Brasil, um ex-padre amante dos quadrinhos e um dos idealizadores do grupo. Ele morava no meu bairro (Neópolis) e, muitas vezes, fui à sua casa mostrar meus trabalhos e pegar livros de quadrinhos emprestados. Ele me apresentou ao pessoal, entre eles o Luiz Elson. Na sequência, tivemos contato com os artistas da primeira geração do Grupehq, como Emanoel Amaral, Aucides Sales, Edmar [Viana], Cláudio Oliveira. Isso foi fundamental para avançar no desenvolvimento técnico. Naquele tempo, a gente desenhava com canetinhas esferográficas e hidrográficas. Aqueles artistas me ensinaram a manusear pincel, tinta nanquim, canetas técnicas, papéis especiais, além de aprender sobre composição e acabamento na arte-final. Foi um salto na aprendizagem. Outra coisa importante foi ter trabalhos publicados na Maturi, um importante canal para desaguar as produções que, na maioria das vezes, ficam engavetadas pelos artistas amadores.

Como foi seu inicio como chargista?

Cabral: Como falei, sempre tinha uma tendência a produzir cartuns e me soltava mais quando fazia desenhos cômicos. Em 1983, Edmar Viana, chargista que publicava na consagrada coluna Cartão Amarelo do extinto Diário de Natal, adoeceu e pude substituí-lo por três meses. Anos depois, ele saiu definitivamente do jornal e eu assumi a coluna em 1988, depois de ter substituído o chargista Cláudio Oliveira na Tribuna do Norte, no seu período de férias no ano anterior. Foram 21 anos ininterruptos no Diário de Natal, superando as dificuldades da linguagem e aprendendo os macetes da produção do humor gráfico.

O lado absurdo da sociedade é matéria-prima para o chargista.

Como era sua relação com chargistas como Claudio Oliveira, Edmar Viana e Emanoel Amaral? E como você avalia o papel desses artistas no cenário dos quadrinhos?

Cabral: Esses caras são referências para mim. Emanoel Amaral foi uma espécie de tiozão; acolhedor, extremamente simpático e um mestre que ensinava o pulo do gato para todos. Além de chargista era ilustrador, quadrinista, mamulengueiro e excelente pesquisador da cultura popular e indígena.

Meu convívio com o Edmar foi bem limitado. Não nos encontrávamos com frequência, pois ele era muito envolvido nas funções que exercia. Mas era um cara muito espirituoso. Seu humor era a expressão de sua personalidade, engraçadíssimo, espontâneo e com uma linguagem direta e popular. Esses chargistas deixaram uma lacuna e um legado para o humor gráfico potiguar. 

Cláudio Oliveira é um gênio. Começou precocemente como chargista. Um cara muito inteligente e com um humor refinado e perspicaz. Trabalhamos juntos no Diário de Natal por um tempo, onde ele me passava muitas dicas ao compartilhar suas produções comigo. Para mim, o melhor chargista e excelente caricaturista. Hoje ele mantém uma produção com charges de alto nível na imprensa paulista.

Como é o processo criativo e qual é o maior desafio em trabalhar com charges diárias?

Cabral: A charge é produzida a partir do noticiário. Ela deve, portanto, ser atual além de engraçada. O maior desafio é ir além do riso, do humor pastelão. A charge deve levar à análise crítica da realidade e o riso é apenas um dos meios de se fazer isso. A dificuldade é fazer isso diariamente, mas com o passar do tempo você passa a dominar os mecanismos e manter um padrão mínimo de qualidade.

(…) a charge não é apenas um texto engraçado. Ela precisa cooperar na reflexão dos leitores, oportunizando uma análise da realidade social. Mais do que denunciar que ‘o rei está nu’ a charge deve ajudar a mostrar a “nudez” do leitor”.

Qual o papel do chargista na mídia? O quanto da charge é história em quadrinhos e o quanto é jornalismo?

Cabral: Diferente do período ditatorial militar, quando os espaços eram limitados e as charges apareciam apenas nos impressos, hoje a charge tem um alcance maior por conta de sua inserção nos blogs e redes sociais. Ficou mais fácil produzir e veicular charges. O desafio é encontrar uma forma de produzir esse humor sem trair a sua natureza crítica, indo além do apelo visual, da linguagem gráfica do humor, e proporcionando a reflexão. Entendo a charge como um texto de cunho jornalístico. E isso não se deve ao simples fato dela estar inclusa em um jornal impresso, mas por causa de sua natureza. A charge deve proporcionar a reflexão, a análise crítica da realidade ali denunciada. Em decorrência disso, existe um fator ético necessário na conduta jornalística de um chargista.

O artista é criador da personagem Mosca-Zezé que teve uma série de tiras publicadas no Diário de Natal.

Já deve ter acontecido de charges suas terem sido mal interpretadas. Isso é uma preocupação para você quando elabora a charge?

Cabral: O texto de humor pode gerar múltiplas interpretações, assim como ocorre com os textos literários. É da natureza do humor ser polissêmico. Assim, é comum encontrar interpretações completamente díspares daquilo que tinha em mente quando produzi a charge. Isso se dá por conta de fatores de diversas ordens: culturais, políticos, religiosos, sociais. Já produzi charges que foram interpretadas como racistas. Isso me incomodou muito porque em hipótese nenhuma tinha em mente discriminar alguém nas charges que produzi. Mas, os elementos estão ali e as pessoas os organizam mentalmente a partir de sua realidade e de sua visão de mundo. Quando percebi esse potencial comunicativo, passei a ter mais cuidado, evitando deixar essas “brechas”, mas creio que essa é uma tarefa impossível.

Humor Sustentável (2006) reúne uma série de tiras sobre o meio ambiente.

O livro Humor Sustentável é uma coletânea de charges com criticas à degradação do meio ambiente, qual a sua ligação com a temática e como surgiu a ideia do livro?

Cabral: A charge é um texto muito perecível. Por tratar de temas do cotidiano político, rapidamente é esquecida. Mas certos temas abordados pelos chargistas são crônicos e cíclicos. Foi quando deixei de publicar na imprensa, que resolvi coletar essas charges com temas mais perenes. Apesar de não ser um especialista na área ambiental, esse foi um tema bem presente nas minhas produções. Acho que ter essa coleção reunida em um volume é interessante até para subsidiar pesquisadores e professores em suas atividades.

Você acha que elementos como a comunicação cada vez mais expressa de forma visual dos dias atuais e o alcance das mídias sociais, potencializam ou diluem o impacto critico das charges?

Cabral: Acho que num mundo exageradamente imagético o risco da diluição do potencial das charges é muito grande. Com os recursos técnicos atuais é bem mais fácil produzir uma imagem engraçada. Os memes estão aí para provar isso. Só que a charge não é apenas um texto engraçado. Ela precisa cooperar na reflexão dos leitores, oportunizando uma análise da realidade social. Mais do que denunciar que “o rei está nu” a charge deve ajudar a mostrar a “nudez” do leitor.

As injustiças e desigualdades sociais são temas recorrentes.

Você mantém um blog chamado Sorriso Pensante, e também possui uma dissertação com o título Humor Gráfica: o sorriso pensante e a formação do leitor. Qual o significado do termo “sorriso pensante” e quais conclusões você tirou de sua pesquisa da dissertação?

Cabral: A expressão “Sorriso Pensante” resume muito do que falei até aqui. O chargista não é o dono da verdade, mas uma voz importante na compreensão e busca dessa tal verdade. Em minha pesquisa de mestrado pude investigar o potencial do humor gráfico, o que me ajudou a refletir sobre minha atuação como produtor de charges. Estudei os diversos mecanismos de produção do riso e cheguei a algumas conclusões sobre a riqueza desses textos para a formação de leitores críticos e reflexivos. Isso se deve às características da charge: um texto que faz você rir enquanto pensa e pensa sobre o que ri.

Cite uma onomatopeia (que você goste da grafia, sonoridade ou que tenha um significado especial para você).

Cabral: Vou citar uma que além de ter relação com o tema dessa entrevista marcou minha infância: IAC, IAC, IAC!  A risada do Pateta.

[1]Grupo de quadrinistas fundado em 1971, por Emanoel Amaral, Lindberg Revoredo, , Reinaldo Azevedo, Luis Pinheiro, Anchieta Fernandes e Walfredo Brasil. O grupo surgiu como fruto da 1ª Exposição Norteriograndense de Histórias em Quadrinhos e ajudou a viabilizar a publicação de HQs e divulgar os artistas potiguares. As revistas Maturi e Igapó são as principais publicações do Grupehq.

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