[Resenha] Maturi – Edição Especial

Durante as décadas de 70 e 80, a revista Maturi foi a publicação independente que ajudou a manter a chama dos quadrinhos potiguares acesa, funcionando como um laboratório para experimentação de ideias em um período de repressão e censura; sendo o veículo que ajudou a moldar uma identidade norte-rio-grandense nas HQs e consistiu numa referência do gênero, sempre calcado num humor irônico que bebeu de diferentes fontes, mas que manteve um DNA próprio.

Maturi – Edição especial marcou o retorno de uma publicação icônica após um intervalo de 20 anos.

Maturi – Edição Especial (2007), revista em quadrinhos produzida pelo Grupehq, marcou a retomada da publicação após quase 20 anos. Apresentando tramas de humor, aventura e ficção em geral, com narrativas de caráter “universal”, mas sempre tendo em sua essência a contemplação de elementos da cultura, costumes e iconografia regionais. Vários artistas com histórico de colaboração com o magazine retornam para esse número especial. Aucides Sales, Claudio Oliveira, Edmar Viana, Emanoel Amaral, Gilvan Lira, Ivan Cabral, Luiz Elson, Marcio Coelho e Williandi ficam a cargo das artes e roteiros.

Vaqueiros, enredo que abre a coletânea, acompanha a jornada de um trio de vaqueiros que, em virtude da escassez de pasto, precisam conduzir o gado de uma fazenda a outra. A HQ de Luiz Elson se concentrando nas atividades rotineiras dos boiadeiros, ilustrando esses homens como aventureiros que desbravam cotidianamente aquele ambiente árido a despeito de todas adversidades que lhe são impostas. O quadrinho também tem o mérito de retratar muito da vegetação e o relevo da caatinga.

Em Trombstone,série de tiras deAucides Sales, o autor utiliza o humor para apontar as dificuldades econômicas da população de baixa renda, bem como as dificuldades e conflitos das diferentes classes sócias. Sales é certeiro não apenas em seu texto afiado, mas também no modo como representa seus personagens com características diversas.

Traças, de Claudio Oliveira, entrega tiras simples e diretas, com artes inocentes, que fazem graça com os hábitos alimentares das traças, fazendo uma alusão a como aquilo que consumimos pode afetar nosso físico e comportamento.

Em Liberdade, Marcio Coelho leva o leitor à “Cozinha do Inferno”, um presidio de segurança máxima localizada em uma ilha afastada do continente, onde Jorge Cloaca, um prisioneiro detido por ter “mexido” com a galinha de raça de um juiz, é mantido ao lado de assassinos e estupradores. No cárcere, o preso enxerga no canto de um pássaro que rodeia a prisão seu único consolo e alimento ao seu sonho de liberdade. A HQ tem um tom poético e intimista e coloca o leitor em contato com as angústias e aspirações do cativo. É das mais interessantes da publicação, e seria elevada a um patamar ainda maior se fosse provida de um pouco mais de refinamento no texto.

Préterito-mais-que-perfeito, de Ivan Cabral, se passa em um futuro distópico, em que parte da população vive na terra em meio ao lixo e destroços, fazendo clamores aos céus, enquanto outra parcela está vivendo no espaço, num ambiente asséptico e controlado. Ivan Cabral usa a narrativa e seu traço limpo e cartunesco para mostrar que, no final nem tudo mudou, as diferenças sociais ainda persistem e a espontaneidade, cada vez mais, vai dando lugar a burocracias e protocolos.

As tiras de Pivete, personagem de Edmar Viana, denunciam de forma escancarada o racismo, as injustiças sociais e a hipocrisia dos políticos.

Em Cabra macho, de Gilvan Lira, um casal passeava a margem de um rio, quando um homem é visto pela mulher nadando nu. Seu acompanhante então decide impressionar a moça e expulsar o descarado, mas a coragem do valentão desaparece de seu semblante quando, ao se vestir, o estranho revela quem realmente é. A HQ não tem balões de fala, mas consegue se expressar com bastante clareza, de modo que todas as ações são facilmente compreensíveis e a conclusão cômica não se perde.

As velhinhas (Marcio Coelho) ri, de forma despretensiosa, dos transtornos decorrentes do envelhecimento.

Zé do mouse, deGilvan Lira, apresenta um menino que faz uso de estrangeirismos de forma desmedida metido e se mete em vários mal-entendidos ao trocar o português pelo inglês.

Mosca Zezé, de Ivan Cabral, usa sua protagonista para filosofar sobre resiliência e a brevidade.

Escrita e ilustrada por Williandi, Nação Zumbi se inicia em um cemitério, à luz noturna da lua, onde mortos se levantam de seus túmulos em uma sequência de páginas que constroem um suspense que culmina numa surpreendente resolução. A HQ tem um traço e arte-final apurados que se sobressaem num enredo que “alfineta” um gênero de produção midiática bastante popular nos dias atuais.

Na história que encerra a publicação, Antônio Silvino “o rifle de ouro”, Emanoel Amaral conta um “causo” em que o personagem título é desafiado a acertar um tiro em uma andorinha que estava assentada na cruz da igreja e o homem mostra estar à altura do desafio. A curta HQ tem um estilo de arte bastante virtuoso, porém convencional e um tanto antiquada, com uma narrativa didática, que apela para textos expositivos e breves elipses entre os quadros para compensar o pouco espaço para o desenvolvimento da história que carecia de mais páginas para se contar de melhor forma.                                                                     

Maturi – Edição Especial é uma celebração à tradicional revista e, pela qualidade apresentada, funciona não apenas como um tributo, mas também como um retrato que exemplifica a diversidade da produção do Grupehq durante os anos. Abrangendo autores de gerações distintas que, com seus respectivos traços e estilos de narrativa, contribuíram para sua pluralidade e evolução, a revista consegue manter muitas das ideias e ideais de seus números iniciais, quando despontou como uma revista “marginal” pequena no tamanho, mas com muito a dizer.

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