[Resenha] O Reinado de Carcosa

Traduzir um texto exige não apenas entendimento da linguagem, mas também a capacidade de interpretar e adaptar o material referencial de modo que as ideias e sentidos pretendidos por seu autor não se percam, evitando que a obra seja descaracterizada ou se torne algo completamente diferente. A tradução de um texto envolto por mistérios e uma suposta maldição pode resultar em um produto ainda mais imprevisível, podendo, a cada nova tentativa, gerar um texto absolutamente distinto. Essa ideia serve de ponto de partida para O Reinado de Carcosa (2022), História em Quadrinhos com roteiro de Marcos Guerra e arte de Will Silva, que tem como inspiração O Rei de Amarelo[1].

O Reinado de Carcosa se inspira em ideias do livro O Rei de Amarelo, de Robert W. Chambers.

A narração se inicia com a protagonista Cássia indo ao Teatro Alberto Maranhão para assistir ao espetáculo dramatúrgico que dá nome à HQ. A peça é escrita e encenada por Camila Nuit, a ex-namorada de Cássia, cujo término a moça não superou, ainda que a relação seja comparada a um câncer. Enquanto aguarda pelo momento de se encontrar com aquela que partiu seu coração, a moça se vê frente à frente com estranhas figuras que, cada uma a seu momento, lhe narram os contos (Cajueiro dos Enforcados, Três homens ilustres e Cheiro da Mulher Envenena). Esses casos, envolvidos por contornos sobrenaturais, estão intercalados à narrativa principal e ligados a esta não apenas tematicamente, mas por um fio narrativo em comum.

A obra como um todo tem um texto muito bem articulado e construído sem apelar para atalhos que pulem etapas ou rodeios que retardem seu andamento, resultando em uma leitura que transcorre de modo espontâneo e instigante. Os diálogos também consistem em um ponto forte da obra, com falas e interações bem formuladas e envolventes.

Outro trunfo do quadrinho é a diversidade de tipos apresentados e a autenticidade com que são representados. Nesse sentido, arte e texto se completam muito bem. Cada personagem soa diferente, tendo ‘vozes’ próprias bem particulares, vocabulários, ações e reações bem distintas.

Em relação ao desenho, Will entrega um trabalho notável. Com uma arte sofisticada, o ilustrador consegue combinar detalhismo e clareza nas cenas e ações. A arte também contribui para a construção de uma ambientação que vai para além da delimitação de local, conseguindo promover uma imersão que confere mais profundidade à narrativa. Lugares familiares aos potiguares, como o Teatro Alberto Maranhão, o Cemitério do Alecrim, o Cajueiro de Pirangi e as Dunas de Genipabu, não são utilizados apenas para compor o cenário, mas para que os personagens interajam com eles.

Por trás de toda a fantasia e abordagem metalinguística, O Reinado de Carcosa não trata essencialmente da luta contra uma maldição literal, mas de um confronto de sua protagonista por salvar a si mesma de um mal mais mundano e cotidiano, mas não menos destrutivo. A batalha para se desapegar de um relacionamento condenado e ‘renascer’ como uma pessoa independente e autossuficiente, e o âmbito libertador deste ato, é onde reside o cerne da HQ e essa ideia vai sendo mais enfatizada à medida que a história avança.

Entre as várias virtudes apresentadas por O Reinado de Carcosa, talvez a principal, seja o fato de conseguir articular várias linhas narrativas de modo que uma não atrapalhe ou ofusque a outra. Embora, em nenhum momento o leitor se esqueça da história de Cassia, cada uma dessas fábulas funcionaria tranquilamente de modo independente e satisfatório, visto que há uma preocupação em tornar todos os segmentos igualmente interessantes, com suas próprias linguagens, ritmos, rimas e conflitos.


[1] Livro de contos de Robert W. Chambers em que uma peça de teatro fictícia enlouquece todos que a leem.

Deixe um comentário